segunda-feira, 22 de novembro de 2010

A Crise IV

(Partes I, II e III)

Isto leva-nos a uma nova viagem no tempo, desta vez até meados do passado século. Após a Segunda Guerra Mundial, os países ocidentais capitalistas tinham ainda bastante presente o fantasma da Grande Depressão (uma crise bastante identica à actual) e trataram de tomar medidas que impedissem que se entrasse em nova crise de tamanha envergadura.

Sob as ideias novas daquele que foi provavelmente o maior economista do século XX, John Maynard Keynes, os países decidiram seguir por um sistema equilibrado que tentava reunir em si os interesses de todos na sociedade capitalista. Os empresários conviviam directamente com o poder crescente dos sindicatos que reivindicavam os seus direitos com cada vez maiores poderes negociais, sempre com a arbitragem dos Governos que intervinham activamente nas economias e na sociedade. É o chamado regime de produção fordista que entende os trabalhadores como potenciais consumidores e assim se esforça por dar a estes cada vez maiores salários e incrementando assim o seu nível de vida. Isto permitia que as desigualdades sociais fossem reduzidas, uma maior protecção dos trabalhadores e desempregados e um nível de bem-estar em grande crescendo ao longo de quase três décadas. O crescimento económico atingido foi o maior de sempre. Ficou recordado como o período de Ouro do capitalismo.

Acontece que, chegando à década de 70, ocorrem alguns factos que vêm mudar por completo o panorama das coisas. Economicamente, surgem várias crises associadas a sucessivos aumentos nos preços do Petróleo por ocasião da criação da OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo). Os modelos económicos keynesianos mostram-se incapazes de resolver a crise instalada e a nova teoria neoliberal que vai surgindo prova ser capaz de melhor responder aos problemas suscitados. Por outro lado, o caminho para a inclusão de cada vez mais grupos sociais excluídos leva na generalidade dos países a cenários de dificuldade dos Governos em lidarem com a massa de gente que agora pretende ser ouvida. Exemplo disso são as reivindicações dos jovens no célebre Maio de 68. A conclusão é que a inclusão foi longe demais. Esta deve deixar de ser uma tarefa dos Governos e deve ser deixada às mãos de cada indivíduo.

No príncipio dos anos 80 surgem dois líderes que acabam de vez com os restos do regime que vigorava até aos anos 60. São eles Ronald Reagan nos EUA e Margaret Thatcher no Reino Unido. Ambos consideram que é a liberalização das economias que permite melhores avanços. Os Sindicatos devem ser enfraquecidos e o seu poder negocial reduzido já que estes distorcem as leis do mercado. O mercado de trabalho deve ser flexível e individualizado. A economia deve ser deixada à mão dos mercados que são mais eficientes e conseguem melhores resultados. Os impostos devem penalizar sobretudo os que menos têm, porque caso contrário funcionam como incentivo aos que mais têm para que trabalhem e produzam menos. Não deve haver salário mínimo porque este é criador de desemprego. Em suma, os Governos devem retirar-se das tarefas que tinham na economia.

Atrás disto vem cada vez maior desigualdade que é contornada com explicações baseadas no mérito individual de cada um. “A sociedade não existe” diz M. Thatcher. Os trabalhadores deixam de ser vistos como consumidores e passam a receber cada vez menores salários.

Mas assim, quem consome? É aqui que entram os mercados financeiros. Com baixos salários, as pessoas são obrigadas a recorrer ao crédito para tudo um pouco. Para o consumo, para a habitação, para os estudos, etc…

Ao nível internacional. Obrigam-se os países em desenvolvimento a abrirem as suas frágeis economias com a crença de que o investimento das empresas estrangeiras lhes dará prosperidade o que vem a revelar-se um rotundo fracasso na maioria dos casos.

O dinheiro começa agora a deambular por todo o mundo, sem pátria e sem fronteiras. Cria-se uma nova super-classe global de grandes executivos e gestores de topo que controlam as principais multinacionais e os grandes bancos.

Com isto, toda a política é agora submetida à ideia de que os mercados, ou seja, o conjunto de todos os individuos na economia que processam informação com objectivo de atingir o seu interesse individual, actuam de forma racional e atingem resultados óptimos.

Quando entramos em crise, damos por nós numa encruzilhada em que os Estados estão dependentes das instituições financeiras de forma completamente anómala e desequilibrada. Mas o problema já lá estava há muito tempo.

O que tudo isto mostra também é que todo o debate sobre a austeridade de que falo na primeira parte deste texto, está enviesado. E está enviesado porque não se ocupa de ir mais longe do que a explicação de que o Estado gasta muito e recebe pouco. No entanto, nenhum dos nossos comentadores se ocupa de ir à procura de perceber o que realmente querem os mercados (aqueles que nos emprestam dinheiro) fora do paradigma dominante que aqui descrevo, dos mercados eficientes.

(Continua)

Tiago Santos

2 comentários:

  1. Olá Tiago
    Acompanho as tuas reflexões sobre a crise que, vindas de um aluno universitário de economia, certamente inquieto, dá ainda mais prazer ler.
    Penso que estás a estudar economia num momento único (não sei se privilegiado) da História, em que tudo ou quase tudo pode ser colocado em questão. Certamente que, desde que começaste o teu estudo, muitos postulados já foram colocados em causa, depois deste enorme turbilhão que atravessa o mundo actual: as teorias, teses, práticas e perspectivas económicas terão necessariamente que mudar. A realidade impõe-se.

    Agora falo-te de outra coisa. Não sei se já viste a "Petição para uma Nova Economia", que está a ser promovida pelo Grupo Economia e Sociedade da Comissão Nacional Justiça e Paz. Pode-te interessar. E pode até que o que eles escrevem na petição te faça pensar, opinar, concordar ou discordar.
    O texto da Petição é um pouco grande. Pode ser visto aqui:
    http://www.peticaopublica.com/?pi=NovaEco

    Li um resumo da mesma aqui:
    http://www.fatimamissionaria.pt/noticia3.php?recordID=37186&seccao=3

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  2. Pe. Albino...

    Obrigado pela sugestão mas por acaso já conhecia e até já assinei: sou o 107...ahah...

    Actualmente estão a surgir muitas iniciativas com vista à abertura da economia a novas teorias. Efectivamente é com diz no comentário: muito foi posto em causa com esta crise. No entanto, ser posto em causa não significa que realmente se mude alguma coisa e a verdade é que muito pouco mudou.

    Nesta minha série de textos sobre a crise tento também abrir o debate, e tento abri-lo a quem não estudou economia. Isto porque entretanto a economia tornou-se um saber demasiado chato e complexo e assim, impermeável ao comum dos mortais. É esta impermeabilidade que faz com que todos sejamos conduzidos, impávidos e serenos, como ovelhas para o matadouro, por supostos iluminados cheios de saber técnico.

    É assim necessário que os economistas se habituem a debater, e que o saber da economia seja alargado para que assim também possa contar com as reais preocupações e os reais problemas das pessoas, fora das abstracções matemáticas que actualmente dominam esse saber...

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