Tinham planos e, de repente, o tapete do destino sacudiu-lhes o corpo e a cabeça. Quiseram desistir, esconder as incapacidades, ignorar a realidade. Reaprenderam a viver, reajustaram os projectos de vida. Sílvio, Vítor, Cláudio e João procuraram formação e arranjaram trabalho. De consumidores de pensões sociais passaram a contribuintes que também fazem girar a economia.
No primeiro dia de trabalho na 'Metro do Porto', Sílvio Nogueira não se apercebeu de que havia gente à sua espera, à entrada do edifício de 16 andares. Fez o habitual cavalinho com a cadeira de rodas para transpor um degrau do prédio, meteu-se no elevador e apresentou-se ao serviço. Quando soube, agradeceu a preocupação e garantiu que não precisava de ajuda. No início, corriam à sua frente para lhe abrirem as portas. Não demorou muito tempo a demonstrar que as suas mãos tinham a mesma eficácia. Mas a melhor resposta veio do chefe de gabinete. O departamento técnico de desenho estava em mudanças, havia caixotes para transportar e Sílvio perguntou se precisavam de ajuda, convicto de que ouviria um habitual "não, deixe estar". Escutou, porém, um "sim, quantos mais melhor, assim acabamos isto mais depressa". Sentiu que estava no sítio certo.
Estudou desenho, medição e orçamentação e está na 'Metro do Porto' desde 2007. Seis meses de estágio, prolongados por mais meio ano, seguindo-se um ano de contrato e entrada nos quadros. "Sou um faz-tudo, um multifunções: apoio os colegas arquitectos e engenheiros, trato das impressões, faço trabalhos em 3D, acabo por ser uma muleta." Para não depender da disponibilidade alheia, comprou uma cadeira de rodas que lhe permite ficar quase em pé. Passa de uma cadeira para a outra e abre os armários para colocar, retirar ou arrumar os dossiers das prateleiras mais altas. A mesma posição permite-lhe cortar folhas na guilhotina sem ajuda.
"Não é por estar como estou que vou deixar de trabalhar. A integração foi fácil, somos todos adultos e acredito que a minha presença na empresa ajudou muito os meus colegas a encararem as pessoas com deficiência", diz. A Metro do Porto teve de fazer adaptações, alargou a porta de acesso a uma casa de banho e esta também foi ajustada conforme as regras. Cedeu um local na garagem do prédio porque os lugares exteriores destinados a deficientes estavam sempre ocupados (bem ou mal). Sílvio aborrece-se com carros estacionados nas rampas, acessos com inclinações absurdas, falta de espaço nos passeios. E tanto falou, falou, que o senhor da farmácia colocou uma rampa de acesso.
Sílvio tem 26 anos, é natural dos Açores. Nasceu na Terceira, aos 10 anos foi viver para o Faial. Agora vive sozinho em Gaia e tem uma vida ocupada: quartas e sextas à noite treino de basquetebol em Braga, sábados de manhã ensaios de danças de salão do grupo Two Generations nos Bombeiros de Gondomar. "Era um pé-de-chumbo, só dançava música de discoteca", conta. Agora andam a assediá-lo para aprender karaté. Sempre que pode, viaja para países onde tem amigos - "é uma forma de poupar". Já passou pela Grécia, Itália, Estados Unidos, Inglaterra, Espanha.
Ficou paraplégico aos 19 anos, num acidente de viação. Trabalhava na construção civil e jogava futebol num clube da terra. A 4 de Maio de 2003, saiu de casa para receber uma faixa das vitórias conquistadas. "Era o Dia da Mãe. Não tinha comprado nenhum presente e disse à minha mãe que a faixa seria a melhor oferta." Pouco depois, o pneu do monovolume que transportava oito pessoas rebentou e a viatura capotou. Sílvio foi o ferido mais grave. "Íamos a 45 quilómetros/hora." Não perdeu a consciência, zangou-se com os bombeiros quando lhe cortaram a camisa que tinha comprado duas semanas antes. Foi transportado para o Hospital da Horta, no dia seguinte para o São José, em Lisboa, onde esteve cinco meses. E daí partiu para Vicenza, em Itália, para reabilitação durante seis meses. Foi onde conheceu uma rapariga que só mexia a cabeça e que quando sorria iluminava todas as vidas ao redor. Sílvio percebeu que a felicidade estava ao seu alcance. "Tenho fé, sou católico. Se, dos oito que iam na carrinha, Deus me escolheu, foi por algum motivo. Tenho orgulho da pessoa que sou." Um sensor nos óculos
Cláudio Poiares não esconde a satisfação pela "boa ideia" que teve ao criar o seu próprio negócio. Aos 15 anos, tinha acabado o 9.º ano, era atleta federado de canoagem, queria ser professor de Educação Física, pensava casar-se e ter filhos. "Tinha ideias fixas, gostava de planear o meu futuro, tinha tudo delineado", confessa. Um mergulho no rio Douro, num intervalo dos treinos de canoagem, alterou-lhe alguns planos. O pescoço bateu no fundo do rio, percebeu imediatamente o que tinha acontecido. "Uma semana antes tinha visto uma reportagem sobre uma situação semelhante. Percebi que estava lixado." Ficou tetraplégico, dependente para quase tudo, praticamente só mexe a cabeça. Hoje, com 28 anos, é casado e tem um filho de oito anos. Entretanto decidiu estabelecer-se por conta própria, Cláudio Poiares Multimédia é o nome da empresa que criou em 2006. Restaura fotografias antigas, manipula imagens, passa cassetes VHS para DVD, decora vídeos festivos com composições gráficas e músicas. É através de um sensor que tem nos óculos que mexe o rato do computador. Fá-lo com desenvoltura para dar resposta às encomendas de familiares, amigos, amigos de amigos. A melhor publicidade é o passa-palavra. Mesmo assim, não está fácil. "Não dá para ganhar muito dinheiro", adianta.
De 1997 a 2006, desenvolveu o gosto pela fotografia, tirou uma formação em Informática e outra em Multimédia. O centro de emprego forneceu-lhe todo o material para o negócio. "Não acreditava que seria possível, achava que seria muito difícil criar o meu negócio porque em Portugal ninguém ajuda ninguém." Enganou-se. Trabalha em casa, a sua dependência é quase total, a mulher tem o seu emprego, o filho está na escola. Com um apoio financeiro, conseguiu contratar uma empregada que o ajuda durante a semana. Só com essa ajuda pôde morar com a mulher e o filho, deixando a casa dos pais.
É disciplinado, definiu o seu horário. "Trabalho sempre que posso, por vezes também ao fim-de-semana." Gosta de passear à beira-mar, ver filmes, estar com o filho, ver as canoas no rio. O clube de Zebreiros, Gondomar, baptizou um torneio com o seu nome. Cláudio tem mais um projecto nas mãos: está preparado para contar a sua história numa autobiografia. "Na minha situação, tetraplégico, com o meu grau de deficiência, não conheço ninguém que tenha conseguido arranjar emprego." As lembranças não se apagam. "Os primeiros meses foram muito duros e foi muito importante poder realizar-me como homem e como pai."
A mão para os amigos
Vítor Costa, 34 anos, sofreu um acidente de trabalho grave, mas também conseguiu redefinir os seus projectos. É técnico de laboratório no departamento de Desenvolvimento da Amorim Revestimentos, empresa do grupo Amorim, situada em São Paio de Oleiros, Santa Maria da Feira. Quando os colegas lhe pedem uma mãozinha, responde que sim, ri-se e acrescenta que só tem mesmo uma para dar. O braço direito perdeu mobilidade, tem uma incapacidade de 67,5 por cento. Vítor desperta-o de vez em quando, para voltar a arrancar alguns acordes da guitarra, mas continua a cumprimentar os amigos com a mão esquerda. "Essa é a mão para os amigos.""É tudo uma questão de prática. Não tenho vergonha da minha incapacidade", afirma. Regressou à Amorim há dois anos, recebeu formação interna para as novas funções. Hoje testa a cortiça em vários ensaios, a reacção dos materiais a diferentes temperaturas, analisa o desgaste abrasivo dos produtos, verifica a resistência à pressão do peso. "A empresa sempre me apoiou. Quando regressei, analisámos a função mais adequada à minha incapacidade", recorda.
O regresso não foi fácil. "Foi um misto de emoções." Nova secção, novas tarefas, um outro método para assimilar. "Mas acabei por adaptar-me bastante bem." O tempo em que pensava que não voltaria a trabalhar rapidamente se tornou passado. "Os meus colegas receberam-me muito bem, nunca me rejeitaram, ajudaram-me bastante nas dúvidas e ainda hoje estão sempre disponíveis." Mesmo assim, tenta evitar ajudas. "Estou muito satisfeito por saber que consigo fazer o trabalho, o que é muito importante. Sinto-me realizado."
A 3 de Novembro de 2004, a lixadeira de bases de cortiça apanhou-lhe o braço e arrastou-o. Vítor, que na altura trabalhava na produção, foi dado como morto, teve três paragens cardiorrespiratórias, lesões no pulmão, no fígado, em várias partes do corpo. Esteve dois meses em coma, quatro meses entubado, sujeitou-se a nove cirurgias em dois anos e meio, apanhou uma pneumonia no pulmão que se tinha aguentado ao acidente, chegou a pesar 29 quilos. Seguiu-se um processo de recuperação de quatro anos, teve de reaprender a andar. Deixou de jogar futebol, mas regressou ao clube de Paramos, Espinho, onde mora, para fazer parte da direcção.
João Correia, 25 anos, já não pode correr pelos campos de São Pedro do Sul, mas encontrou outras ocupações. Pratica hipismo, tem um blogue, faz parte de um grupo de jovens que organiza festas, o Carnaval, corridas de carrinhos de rolamentos. E, de vez em quando, desenha no computador objectos a que depois dá forma na carpintaria do irmão. Um tabuleiro de damas faz parte dessa colecção.
Uma bola anti-stress
Há um ano que João trabalha na Martifer, empresa de construção e de energias renováveis, em Oliveira de Frades, depois de ter frequentado uma formação em desenho assistido por computador. Capacidades analisadas, foi hora de apalpar o pulso ao mercado de trabalho. Já faz parte dos quadros. "Os meus colegas encaram-me como uma pessoa normal." A concentração é fundamental. Tem de estar muito atento, seguir as indicações dos engenheiros, passar os desenhos de construção para o computador e verificar se há algum erro antes de dar ordem de impressão. Garante que está a dar conta do recado. O chefe ofereceu-lhe uma bola anti-stress vermelha, em forma de coração, para treinar a mobilidade das mãos. "Está a ser muito bom, estou a conhecer o mundo profissional. Dão-me apoio, mas dão-me trabalho. Tenho a minha vida encarreirada."
João tem o lado direito do corpo e a voz afectados. Tinha 16 anos, estava a 200 metros de casa, e numa curva seguida de uma contracurva o condutor de uma moto ainda mais potente do que a sua decidiu encurtar caminho e sair da sua faixa. Choque frontal. João sofreu um traumatismo cranioencefálico, ficou dois meses em coma. Não desistiu. "Era uma pessoa do campo, que gostava de correr e de saltar pelos matos e, de um momento para o outro, o acidente mudou-me a vida." Os primeiros meses foram complicados, mas acabou por se decidir a sair de casa. Voltou à escola, fez o 12.º ano, e ainda andou de olho no ensino superior. Queria tirar um curso ligado a uma engenharia. "Queria ser alguém na vida, andei a sondar universidades, mas percebi que não tinha capacidades." Fez reabilitação neuropsicológica e desceu à terra. "Comecei a ver o mundo como realmente era, ainda andava um pouco na lua." Hoje, com os pés assentes no chão, sabe o que pode fazer e todos os dias tenta dar o seu melhor num gabinete envidraçado da Martifer. O Centro de Reabilitação Profissional de Gaia (CRPG) é uma das instituições que se dedicam à integração das pessoas com deficiência no mercado de trabalho. Sílvio, Cláudio, Vítor e João passaram por lá. O Centro de Reabilitação Profissional de Alcoitão, o Centro de Educação e Formação Integrada, o Centro de Medicina de Reabilitação da Região Centro (Rovisco Pais) com apoio do CRPG, entre outros, também trabalham esta ligação. A falta de qualificações e os preconceitos instalados são os maiores obstáculos à integração e, por isso, é importante investir na formação e sensibilizar os empresários para um sistema que, muitas vezes, desconhecem. "O nosso papel é apoiar o encontro das duas realidades", refere Jerónimo Sousa, director do CRPG. Cada caso é um caso e o acompanhamento personalizado faz a diferença. "É importante um apoio individualizado, analisar situação a situação, numa lógica de apoio prolongado. Sentindo que têm essa retaguarda técnica à mão, sentem-se mais confiantes."A interrupção abrupta de um projecto de vida é um assunto complexo. "É um problema surdo, que não se ouve, que está metido nos cantos das casas, nos cantos dos cafés", sustenta Jerónimo Sousa. Em 2007, um estudo do CRPG, realizado em parceria com o Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, revelava que 28,7 por cento dos homens com deficiências e incapacidades tinham trabalho. Percentagem que descia para 24,1 por cento no caso das mulheres. Na distribuição por sexos, as mulheres predominavam nas funções não qualificadas e os homens nos cargos de operários e artífices. A taxa de actividade tendia a diminuir com a idade e verificava-se um índice de desemprego duas vezes e meia superior à média nacional. O cenário actual não é animador, devido à retracção da economia.
Por Sara Dias Oliveira
in Público
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