quarta-feira, 27 de junho de 2012

A sociedade actual: problemas e alternativas


«A qualidade materialista e egoísta da vida contemporânea não é inerente à condição humana. Muito do que hoje parece ‘natural’ remonta aos anos 80: a obsessão pela criação de riqueza, o culto da privatização e do sector privado, as crescentes disparidades entre ricos e pobres. E sobretudo a retórica que vem junto: admiração acrítica dos mercados sem entraves, desdém pelo sector público, a ilusão do crescimento ilimitado.
Não podemos continuar a viver assim. O pequeno crash de 2008 foi um aviso de que o capitalismo não-regulado é o pior inimigo de si mesmo: mais cedo ou mais tarde há-de ser vítima dos seus próprios excessos e para salvar-se recorrerá novamente ao Estado. Mas se nos limitarmos a apanhar os bocados e continuar como dantes, podemos esperar convulsões maiores nos próximos anos.
E porém parecemos incapazes de conceber alternativas. Também isso é novo.»

In Judt, Tony (2011 [2010]) Um tratado sobre os nossos actuais descontentamentos, Lisboa, Edições 70. Tradução, Marcelo Félix.

A citação acima é claramente perturbadora. Em muito poucas linhas resume grande parte daquilo que deve ser relembrado por quem está descontente com o rumo actual das sociedades ocidentais. A primeira frase faz ao mesmo tempo uma análise importante e abre uma porta necessária. A vida contemporânea é materialista e egoísta, mas não sendo inerente à condição humana, significa que a vida contemporânea não tinha de ser assim – fica aberto o espaço para a mudança, para a alternativa, aquela que não conseguimos vislumbrar, como revela o fim deste trecho.

Esta citação abre-nos ainda mais algumas portas. Se a vida contemporânea não tinha de ser como é, a verdade é que é assim por alguma razão. Judt, como um dos mais importantes historiadores do século XX, reconhece a origem do pensamento que nos trouxe até aqui. A história é feita de processos e não de quebras repentinas. Saber a história que nos trouxe até aos actuais descontentamentos é urgente para descobrir as alternativas que tanto necessitamos. O autor dá-nos até uma década concreta – a década de 80. Foi nesta década que aconteceram importantes mudanças políticas no mundo ocidental que forjaram a realidade social e política que atravessamos hoje. Essa realidade não é desligada das ideias criadas por inúmeros filósofos políticos, economistas ou sociólogos que viveram até essa década e que viram políticos como Thatcher ou Reagan pôr em prática as suas ideias, que vingaram e se tornaram dominantes até aos dias conturbados de hoje.

Porque é que tudo isto é importante para nós? Como explica Judt, no princípio era o verbo. A Economia e a filosofia política dominantes monopolizaram o espaço público e a maneira de pensar sobre a sociedade. Monopolizaram a forma de falarmos uns com os outros sobre os problemas e sobre a forma de os ultrapassar. De repente, tudo se tornou dominado pela excelência, competitividade, empreendedorismo, iniciativa individual, mérito, lucro, produto, etc… Todas as escolhas sociais são sujeitas a cálculos económicos onde a sociedade é entendida como uma mera soma de indivíduos que perseguem avidamente o seu interesse próprio.

No entanto, mantém-se algumas bolsas onde as análises são diferentes e, por isso, as palavras usadas também são diferentes. Acontece que adquiriram um carácter tão furtivo que sempre que ouvimos alguém falar dessas formas, sentimos que essa pessoa teve umas longas férias em Marte. Acontece quando ouvimos um comunista falar em exploração capitalista, luta de classes, imperialismo ou interesse colectivo. Também acontece quando ouvimos um padre falar em caridade, amor ao próximo, pecado, valores ou entrega aos outros.

Se a sociedade actual é herdeira de uma forma de pensar, mostra-se como especialmente relevante conhecer essa forma de pensar. Conhecer as suas raízes, os seus porquês e os seus propósitos. Algo que dentro da Igreja poucos se parecem esforçar por fazer. Por isso ouvimos tantas vezes falar em crise de valores se que consigamos entender o real significado do que está a ser dito. Que valores existem actualmente e porquê? Que valores queriamos realmente ver na sociedade? Quais as ligações entre os valores actuais e as nossas próprias acções? Por exemplo, não podemos defender uma diminuição do serviço público de transportes por razões puramente economicistas e depois criticar avidamente a nossa sociedade porque os indivíduos apenas pensam no lucro rápido e fácil.

Na sociedade tudo está ligado de uma forma funcional e entendê-la dá-nos os primeiros passos importantes para a transformar. Como Judt afirma no fim do livro citado acima, citando, se não me engano, Karl Marx: “até aqui os filósofos apenas interpretaram o mundo de várias maneiras; a questão é mudá-lo.” No entanto, para o mudar, temos de saber como é que os filósofos o interpretaram. Penso que neste momento é esse o desafio.
Tiago Santos, JMC

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