segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

“Dou graças por partilhar a minha vida com um povo tão especial”

Olá meninos,
Aqui vai a carta tanto esperada e, como alguém dizia, um presente de Natal.
Não sei já que língua escrevo, tenho alguma dificuldade a escrever....
Como o tempo passa, estou aqui há quase 10 meses, pelo carimbo que me colocaram à chegada, em Brasília, passaram já 11 meses... mas isso é outra história.
Nem sempre consigo aceder aos emails, nem escrever mensagens. Mas hoje parece que estou num dia em que até está a ser fácil...

O trabalho é mais que muito
Mas agora vamos ao que interessa: A Missão Catrimani fica junto ao rio Catrimani e tem 3 comunidades: As malocas  Mauxiu, Maama, Rokoari, que ficam a pouco tempo a pé da missão. À maioria das comunidades temos de ir de barco ou a pé, pois não temos outro meio de transporte, podemos ter de andar de 1h a 8h a pé pela floresta, mas sempre acompanhados; claro que os Yanomami não demoram tanto como nós!
O trabalho é mais que muito, não temos mãos a medir, desde que cheguei a missão entrou na reforma das nossas casas, que estavam degradadas por causa do cupim... mas agora já estão prontas; a escola também foi arranjada.
Fazemos o acompanhamento dos professores nas comunidades, pois cada comunidade tem o seu professor e vice-professor e ficamos nas comunidades partilhando um pouco da sua vida e das suas vivências. Nessas viagens acontecem muitas peripécias e histórias para mais tarde recordar, pois já são tantas que é difícil descrever a mais engraçada e a menos perigosa.

Aventura radical: O que para nós e desporto para eles é o seu dia-a-dia
Já fiz um pouco de tudo nas visitas às malocas, desde ralar macaxeira e ralar os dedos também... espremer a macaxeira moída no tipiti e cair no chão... ir à pesca e uma piranha me roer os dedos e ficar com um peixe espetado num pé... trabalhar na roça e ficar com os dedos e braços feridos pois as ervas cortam, mas aí estou à espera de um cacho de bananas de pagamento...
Aprendi a remar e a pescar, embora não tenha sorte é pesca mas isso é outra história... sempre quis andar de canoa e viver uma aventura no rio; aqui tive aventura radical pois me levaram para lugares em que só dizia: “nós vamos conseguir passar de barco!”. Eles riam-se e diziam: “salta por cima do tronco!”, ou “deita-te no barco para passar”. Na verdade, o que para nós é desporto para eles é a sua vida, o seu dia a dia.
Participei, também, numa festa Yanomami (festa das Cinzas) de um jovem que morreu pouco depois de ter chegado à missão, foi dos momentos mais tristes que vivi pois todos, do maior ao mais pequeno, se uniram na dor e choraram, nesta festa  comemora-se a vida, canta-se de noite, bebe-se o mingau, e há muitos discursos e danças durante a noite; vêm convidados de outras comunidades e têm um ritual próprio.

Fazer um peditório para a máquina!
Na missão temos sempre pessoas pois durante a tarde as crianças e mulheres vêm até à missão e aí ficamos a conversar, sabemos as novidades, aprendemos a falar algumas palavras Yanomami, e aprendemos, no meu caso, trabalhos manuais...
Numa das últimas saídas fiquei sem maquina fotográfica pois ao visitar uma comunidade, ao passar uma ponte improvisada, caí eu e a maquina na água e pronto, acabaram as fotos, agora tenho de fazer um peditório para poder ter outra máquina... Foi para o conserto mas ainda não a tenho e o conserto fica quase tão caro como uma nova....

Sentir uma paz inquieta
O que mais gosto mesmo é o contacto com as pessoas, principalmente crianças e mulheres. Posso até dizer que tenho já filhas e netos! Eles não compreendem porque não sou casada e não tenho filhos, como vai ser a minha vida. Quem me dá comida, quem cuida de mim, o que vai ser de mim mais velha...
As mulheres enfeitam-me com folhas e pintam-me para eu namorar, não importa com quem o que interessa é que não esteja só... mas já lhes disse que só posso casar com napë (branco) o que é difícil já que na missão não existem, só mesmo os padres, mas isto é um aparte.
Estou muito feliz como nunca me senti, e em paz, uma paz que ao mesmo tempo inquieta, pois faz-me questionar a minha vida, a forma como vivi e vivo. Para se ser feliz é preciso tão pouco ou nada, basta a graça de Deus e colocar nas mãos de Deus a nossa vida, tudo fica mais fácil mais leve. Mesmo nos momentos mais difíceis Deus é que é a força que me ampara e me dá a força para caminhar, acreditem que há momentos que dá vontade de desistir e dizer basta, mas á sempre uma voz que segreda ao ouvido e diz: tem calma, tudo ficará tranquilo, e o coração fica em paz.

Nos perigos, tenho cuidado, o Senhor faz o resto
Todos me dizem: “Não tens medo!”, claro que tenho, estaria a mentir se disse-se que não, mas tenho confiança no Senhor que é o meu pastor, n’Ele confio. No meio da floresta ou no rio, ou pelos caminhos há animais e perigos mas tenho cuidado e o senhor faz o resto.
Coloco a minha alegria no senhor e a minha alma se gloria em Deus meu salvador, que todo seja para seu louvor, coloco-me totalmente nas suas mãos. Dou graças por poder partilhar a minha vida com um povo tão especial, que vive em liberdade, em sintonia com a natureza e o criador, vive do pão nosso de cada dia, pois cada dia é um recomeço.

O segredo da felicidade
Neste mundo onde cada vez queremos juntar mais e mais coisas, mas esquecemos do mais importante de viver e partilhar a vida, não coisas vazias sem sentido, partilhar a vida mas vida em abundância no amor, sou feliz quando ao meu lado o meu irmão também o é.
O segredo da felicidade é mesmo esse caminhar ao encontro do outro, só sou feliz quando faço os outros felizes, quando dou um sorriso a alguém que está triste, dou uma gargalhada.... ando com um sorriso no rosto, e, então, vão-se perguntar porque será que esta pessoa está feliz, e vêm que esse amor vem do Senhor...

Um milhão de beijos com muito carinho e amizade e saudade
totihi mahi
awei
Lígia Yoyo

2 comentários:

  1. Nada como vivenciar a simplicidade da vida na primeira pessoa. É bom sentir a tua felicidade através das tuas palavras. Beijinhos com muita saudades. Boa missão!

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